Efectivamente não era habitual, aquilo, e a situação já estava a dar com ele em doido. Há várias noites seguidas que o cão ladrava a esganiçar-se para a janela que dá para o pátio. O próprio animal não pregava olho, plenamente invadido pela obsessão com os escassos dez metros quadrados, lá fora, e a pequena arrecadação lá ao fundo com a porta entreaberta. Invariavelmente à mesma hora, todas as noites, por volta das quatro e meia, para ser mais conciso, aquele momento em que o sono atinge o seu estado mais profundo. De nada serviam os castigos ao patife e as inofensivas, mas marcantes, palmadas no focinho só para o reprimir. Talvez a solução para o problema passasse antes por um método qualquer para afastar os gatos do quintal e acabar de uma vez com a desordem. Mas até ideia melhor, a rotina das últimas noites prometia repetir-se. Lá se levantava, mandava calar o cão e abria a porta do pátio, para onde o bicho saía disparado a correr, a cheirar tudo, e para investigar com urgência a arrecadação. “Anda para dentro, é de noite, e os gatos já se foram”, dizia-lhe, já em angústia, naquela inocência humana de que os cães percebem, palavra por palavra, o que lhes dizemos. As restantes horas até de manhã para o cão eram passadas a latir, tal não era o seu medo de que os gatos “invadissem” o “seu” território. Na última noite atingiu o limite. Estava especialmente cansado e o cão lá parecia um relógio, a rosnar e a ladrar desalmadamente às quatro e meia da manhã, com as patas apoiadas no beiral da janela. Ele levantou-se determinado e tinha decidido, independentemente do frio, fechar o cão lá fora. Nem acendeu a luz. Aproximou-se, percorreu com o olhar o exíguo espaço para confirmar que não estaria a chover e para ver se encontrava os culpados de tal desassossego. E foi então que viu. Uma criança. Uma menina, com não mais de oito anos de idade, um vestido despretensioso, de dormir, e um peluche debaixo do braço. O rosto, mergulhado nos cabelos pretos que lhe caíam pelos ombros, continha daquela tristeza de quem tinha estado a chorar. À distância, cruzaram olhares, mas não mais do que cinco segundos. A catraia, sempre de rosto inalterado, deu meia-volta e entrou na arrecadação. Com o coração aos pulos e com o cão aos pés, irrequieto como nunca, foi lá fora, abriu lentamente a porta da arrecadação, entrou e acendeu a luz. Mas nem vestígios. Foi como se a menina nunca ali estivesse. “Estou morto de cansaço”, pensou, e voltou-se a deitar. Só que não dormiu nem mais um segundo e limitou-se a esperar que a manhã lhe desse pretexto para sair dali.
As Noites em que o Cão Ladra (II)